SBP Sociedade Brasileira de Psicologia

Associado da SBP contesta publicação de articulista da revista Veja

Humaniza Redes

O associado da Sociedade Brasileira de Psicologia, Jean Von Hohendorff, Psicólogo, Mestre em Psicologia pela UFRGS, Doutorando em Psicologia na UFRGS, redigiu uma carta para contestar o articulista da revista Veja, Rodrigo Constantino, que no dia 10 de julho de 2015 publicou em seu blog hospedado no site da revista, um post intitulado “Esquerda continua com sua agenda de relativizar a pedofilia”, em que afirma que um cartaz do projeto Humaniza Redes, do Governo Federal “tenta tratar pedófilo como uma pobre vítima, alguém que ‘apenas’ tem desejo por menores, e que não necessariamente quem abusa de menores é pedófilo”.

Leia abaixo a carta de Jean Von Hohendorf:

“Rodrigo Constantino, colunista da Veja, publicou texto intitulado “Esquerda continua sua agenda de relativizar a pedofilia”, no qual apresenta um cartaz do Humaniza Redes, uma iniciativa do Governo Federal ao enfrentamento das violações de direitos humanos na internet, principalmente de crianças e adolescentes (mais informações em www.humanizaredes.gov.br). O cartaz que Constantino utilizou possui os seguintes dizeres: “Mitos e verdades sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes. Mito: Toda pessoa que abusa de uma criança ou adolescente é pedófilo. Verdade: Nem todas. A pedofilia é um transtorno de personalidade caracterizado pelo desejo sexual por crianças pré-púberes, geralmente abaixo de 13 anos. Para que uma pessoa seja considerada pedófila, é preciso que exista um diagnóstico de um psiquiatra. Muitos casos de abuso e exploração sexual são cometidos por pessoas que não são acometidas por esse transtorno. O que caracteriza o crime não é a pedofilia, mas o ato de abusar e explorar sexualmente uma criança ou um adolescente”.

De acordo com Constantino, esse cartaz é “asqueroso”, sendo uma forma de “tolerar ou mesmo até respeitar os pedófilos”. O autor utiliza alguns exemplos para comprovar o que ele chama de “libertinagem” em relação ao tema da pedofilia: apresentadora canadense que possui programa televisivo sobre “apetrechos e brinquedinhos eróticos”; jornal britânico que publica matéria sobre pesquisa na qual foi concluído que “um em cada cinco adultos são capazes, em certo grau, de ser sexualmente despertados por crianças” e a autora do estudo menciona que  “a compreensão é o caminho para lidar com a questão”. Constantino chama tais exemplos de “propaganda esquerdista” mencionando que seus resultados começam a aparecer ao citar o caso de “um rapaz [que] foi preso no interior de São Paulo no começo de 2013 por abusar de seus próprios sobrinhos”.

Não é objetivo desse texto discutir qualquer partidarismo político, mas sim, o esclarecimento a respeito do conteúdo do cartaz utilizado por Constantino. Para tal, é necessário que se diferencie, ao menos, três conceitos que, embora interligados, são diferentes: violência sexual, estupro e pedofilia. A violência contra crianças e adolescentes consiste no envolvimento de uma criança ou adolescente em qualquer interação de caráter sexual, na qual o(a) agressor(a) utiliza de meios de coerção para realizá-la. Dessa forma, a violência sexual inclui diferentes interações de cunho sexual – assédio verbal, carícias, intercurso sexual, etc. – nas quais os agressores estão em posição de autoridade em relação às vítimas, seja por conta de sua maior força física ou maior conhecimento. O conceito de violência sexual é utilizado pela sociedade em geral como meio de caracterização desse fenômeno. Em termos legais, a tipificação criminal da violência sexual no Brasil recebe o nome de estupro. Desde 2009, quando a lei 12015/2009 foi aprovada, todas as formas de violência sexual são consideradas, na esfera criminal, estupro. O estupro é definido no código penal brasileiro como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (art. 213). Quando a vítima possui menos de  14 anos, a tipificação criminal passa a ser estupro de vulnerável: “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos” (art. 217A). “Qualquer outro ato libidinoso” inclui qualquer forma de interação sexual nas quais não há a conjunção carnal – toques, carícias, pornografia infantil, etc. A pedofilia, por sua vez, é um transtorno mental incluído no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). Sendo assim, há critérios para o estabelecimento do diagnóstico de pedofilia: fantasias sexuais, recorrentes e intensas, impulsos sexuais ou comportamentos sexuais envolvendo atividade com criança pré-púbere, geralmente com idade inferior a 13 anos, sendo o indíviduo (pedófilo) com idade igual ou maior de 16 anos e cinco anos mais velho do que a criança ou adolescente.

O crime – o estupro – é o ato em si e não um diagnóstico. Dessa forma, o termo mais adequado para se referir a qualquer pessoa que pratica qualquer tipo de violência sexual, portanto, comete um crime, é agressor(a) sexual. Nem toda pessoa que comete estupro é diagnosticada com o transtorno mental pedofilia. Existem pedófilos que nunca cometem nenhum tipo de violência sexual contra crianças e adolescentes. Não é necessário o cometimento de violência sexual para o diagnóstico de pedofilia, pois essa pode se manifestar somente pelas fantasias sexuais, recorrentes e intensas e não necessariamente pelo comportamento sexual inapropriado. Alguns pedófilos possuem o desejo sexual pela criança ou adolescente, mas não o expressam em comportamentos. Agressores sexuais podem possuir outros diagnósticos, sendo um dos mais comuns o Transtorno de Personalidade Antissocial – um padrão recorrente de desconsideração e violação dos direitos dos outros, ou, ainda, não possuir um diagnóstico. Ao restringirmos o cometimento da violência sexual e, consequentemente, do crime de estupro, à pedofilia estaríamos ignorando todos os casos nos quais os agressores sexuais não possuem os critérios diagnósticos desse transtorno, ou seja, estaríamos ignorando antissociais e agressores sexuais sem um diagnóstico fechado. Isso sim seria “asqueroso”! A última frase do cartaz do Humaniza Redes, citado por Constantino como uma forma de “tolerar” os pedófilos, é bem clara ao mencionar que "o que caracteriza o crime não é a pedofilia, mas o ato de abusar ou explorar sexualmente uma criança ou adolescente”. O que está sendo dito nessa frase é que a violência sexual, e, consequentemente, o crime de estupro, não se restringem a um diagnóstico. Trata-se de um fenômeno complexo que vem sendo muito estudado nas últimas décadas.

Parte dos estudos sobre violência sexual contra crianças e adolescentes tem focado a questão da pedofilia, buscando entender esse transtorno mental e, assim, desenvolver programas preventivos e de recuperação. Tratar a pessoa com pedofilia como doente é o primeiro passo para buscar recuperá-la e, sim, “a compreensão é o caminho para lidar com a questão”. Se conseguirmos encontrar meios de prevenção e intervenção efetivos, diminuiremos o número de pedófilos que podem cometer violência sexual. O tratamento de uma pessoa com pedofilia que cometeu violência sexual– um(a) agressor(a) sexual, portanto – não exclui sua responsabilização criminal. Porém, somente a responsabilização criminal não basta. É preciso trabalhar preventivamente com pedófilos que nunca cometeram violência sexual e intervir para recuperar os que cometeram (mais informações em http://tinyurl.com/pd2z3wt). Pesquisas como a citada por Constantino, que evidenciam a alta prevalência de indivíduos diagnosticados como pedófilos, só reforçam a necessidade de se investir em estratégias efetivas de intervenção, recuperação e responsabilização.

O Brasil tem feito inúmeros avanços no combate à violência sexual contra crianças e adolescentes. O Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (disponível em http://tinyurl.com/ozssvn9), que vem sendo debatido e aperfeiçoado desde sua aprovação, em 2000, é o principal exemplo disso. Convido Constantino a ler esse Plano que está estruturado em seis principais eixos: Análise da situação, Mobilização e articulação, Defesa e responsabilização, Atendimento, Prevenção, e Protagonismo infantojuvenil. O eixo Defesa e responsabilização consiste em “atualizar a legislação sobre crimes sexuais, combater a impunidade, disponibilizar serviços de notificação e responsabilização qualificados”. Veja bem que o Brasil está investindo no combate à impunidade e responsabilização dos agressores, sejam eles pedófilos ou não. Uma das formas de contribuírmos com o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes é entendermos esse fenômeno, buscando informações e divulgando-as de forma responsável. Utilizar um cartaz que tem como objetivo exatamente isso – conscientização – de forma distorcida e sem o devido embasamento é um desserviço. Quem sabe um dia veremos colunas de grandes revistas e jornais publicarem matérias sobre iniciativas como o Disque 100 – outra iniciativa decorrente do eixo Defesa e responsabilização do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. O Disque 100, também conhecido como Disque Direitos Humanos, consiste em um serviço federal que recebe notificações de casos de suspeita de violência sexual contra crianças e adolescentes, bem como demais violações de direitos humanos. Qualquer pessoa, diante de uma suspeita, pode (e deve!) acionar o Disque 100. Os números de notificação de violência sexual contra crianças e adolescentes têm crescido graças ao Disque 100, ou seja, graças à maior visibilidade e atenção em relação à violência sexual. Quando Constantino afirma que os resultados de “tolerar ou mesmo até respeitar os pedófilos” começam a aparecer, citando um caso de violência sexual ocorrido em 2013, ele se engana. Não são os resultados de “tolerar ou mesmo até respeitar os pedófilos” que estão aparecendo. São os resultados de uma política nacional de enfrentamento à violência sexual que está dando visibilidade a esses casos e fazendo com que mais pessoas estejam alertas e notifiquem. Graças a essa política, muitos casos não permanecem mais em segredo, cercados de mitos – como o citado pelo Humaniza Redes – e falta de informação. Não importa quem seja o(a) provável agressor(a), a situação deve ser notificada. Disque 100! Isso protegerá a vítima e auxiliará na responsabilização do(a) provável agressor(a), seja um(a) pedófilo(a) ou não, pois “o que caracteriza o crime [segundo a legislação] não é a pedofilia [diagnóstico], mas o ato de abusar e explorar sexualmente uma criança ou um adolescente [formas de violência sexual consideradas pela legislação como estupro].”

Jean Von Hohendorff, Psicólogo, Mestre em Psicologia pela UFRGS, Doutorando em Psicologia na UFRGS, Membro dos Grupos de Pesquisa CEP-Rua (UFRGS) e GPEVVIC (PUCRS) e do GT ANPEPP Tecnologia Social e Inovação: Intervenções Psicológicas e Práticas Forenses contra Violência, e Membro Honorário ISPCAN (2012)

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